sábado, 28 de março de 2015

Os comunistas cujo nome é ninguém, por Urariano Mota


Urariano Mota*
Pesquiso na internet, e vejo que o Partido Comunista do Brasil foi fundado em 25 de março de 1922 por um punhado de dirigentes, que representavam 73 militantes de associações políticas de trabalhadores: Astrojildo Pereira (jornalista), Cristiano Cordeiro (advogado), Joaquim Barbosa (alfaiate), Manuel Cendón (alfaiate), João da Costa Pimenta (gráfico), Luís Pérez (vassoureiro), Hemogêneo Fernandes da Silva (eletricista), Abílio Nequete (barbeiro) e José Elias da Silva (pedreiro).
Da pesquisa, no endereço  http://mucareis.blogspot.com.br/p/fundacao-e-fundadores-do-pcdob.html   vêm breves perfis dos fundadores:
Manuel Cedón

   "Artesão-alfaiate, espanhol-brasileiro. Militou em seu sindicato. Influenciado pelos socialistas da Argentina (Justo), onde viveu. Nunca foi anarquista. No PCB, fiel e disciplinado, mas um tanto pesado e bonachão. Faleceu em 1927, na Santa Casa de Misericórdia. Foi fiel até a morte."

Joaquim Barbosa

 "Artesão-alfaiate. Militou em seu sindicato..."

Astrojildo Pereira  

   "...nasceu em Rio Bonito, Estado do Rio. Era Filho de um médico proprietário rural e comerciante, descendente próximo de portugueses. [...] Era jornalista [...], Fluente e brilhante."

João da Costa Pimenta  

   "...gráfico. Militante sindical, ex-anarquista. Foi um dos raros operários comunistas de 1922. Prestou serviços no sindicato dos gráficos do Rio de Janeiro."

Luis Peres 

   "... artesão-vassoureiro. Filho de um vassoureiro anarquista, espanhol. [...] Militou nos primeiros tempos. Mudou-se para Taubaté, melhorou de condições e desapareceu."

Hermogênio Silva

  "Carioca, nascido em 1887, filho de um anarquista espanhol e da mulata Catarina, filha de lavradores. Hermogênio era operário eletricista da Light (empresa de eletricidade) na cidade de Cruzeiro, no Vale do Paraíba, São Paulo. Passa depois a ser ferroviário da Rede Mineira de Viação na mesma cidade."

Abilio de Nequete

  "barbeiro sírio foi um dos organizadores do congresso de fundação. Foi delegado de Porto Alegre (RS) e representava além daquele grupo comunista, o PC uruguaio e o Birô da IC para a América do Sul."

Cristiano Cordeiro

   "foi professor, bacharel, pequeno funcionário público no Recife. Militante devotado,[...] Sofreu perseguições. Continuou maçon, mesmo depois de ser membro da CCE. Foi prestista. Manteve ligações com o representante da Coluna Prestes no Nordeste..." .


A pesquisa nos fala que a reunião terminou com todos cantando (baixinho, por razões de segurança) o hino do proletariado do mundo, A Internacional. .
Não pretendo me referir aos ilustres fundadores, cujos nomes entraram na história. Mas gostaria muito de falar de Astrojildo Pereira e de Cristiano Cordeiro. De Astrojildo, era bom que falasse do intelectual brasileiro que primeiro assentou o lugar de Machado de Assis contra os sectários, que desejavam pôr o nosso mais genial escritor na categoria de alienado. Um crítico literário e homem de ação além do seu tempo, Astrojildo. Fica para outra oportunidade.
Já sobre Cristiano, era bom mencionar o lugar especial de um mestre agitador, liderança incontestável em Pernambuco, cuja influência sobre os militantes pernambucanos levou um delegado do partido a escrever num relatório, quando veio ao Recife resolver uma desobediência partidária. Cito mais ou menos de memória: “No Recife não existe comunismo. Ali, há somente o Cristianismo, de Cristiano”. Dele, ainda, era ótimo lembrar um ato no teatro de Santa Isabel, que foi documentado por vias indiretas na música popular. No século XX, em 1933, no  palco do teatro, Cristiano Cordeiro lançou a chapa de nome “Trabalhador, ocupa teu posto”, que depois serviria de inspiração para o compositor Nelson Ferreira, que compôs o frevo “Coração, ocupa o teu posto”. Um sucesso, na política e no frevo, que se canta até hoje.
Assim como não falo também, e como gostaria, se tempo e competência tivesse, da fase de ouro do Partido Comunista do Brasil, quando o partido era também o lugar de abrigo e estímulo dos mais brilhantes criadores da cultura e da ciência nacionais.  Se assim eu pudesse, passariam diante dos nossos olhos as pessoas de Graciliano Ramos, Jorge Amado, Portinari, Mario Schemberg, Di Cavalcanti, Caymmi, Rubem Braga, Barão de Itararé, Abelardo da Hora, Solano Trindade, Niemeyer, Mário Lago, e tantos, tantos que a simples ausência dos seus nomes na lembrança é sintoma de ignorância.
Prefiro falar, ainda que brevíssimo, da matéria mais perto de mim, do meu chão. Falar de quem muitas vezes é tido como de nível ao rés do chão.
Por exemplo, de uma arremetida do padeiro José, em Água Fria, no Recife. Parece incrível, mas ele, um sertanejo, vindo de um meio conservador, se fez operário e agitador de greves no Recife antes de 1964. Clandestino depois do golpe, sem poder voltar às antigas agitações nas praças, ele explodia para a esposa, uma senhora muito cristã e devota. Entendam. O padeiro recebia a provocação, na forma de piedoso motivo de, na hora do recolhimento. Um dia, quando a religiosa companheira foi dormir, ao fim de muitas orações ela se benzeu com estas palavras:
- Com Deus eu me deito, com Deus eu me levanto.
Ao que o vermelho e velho José deu um pulo da cama:
- Diabo! Se é com Deus, não é comigo. 
Tanto tempo se passou e não me esqueço de tal pulo de raiva do padeiro.  
É inesquecível para mim a pessoa de Ivo, dono de um boxe que ficava à esquerda da entrada do Mercado Público de Água Fria. Ele estudava economia, era leitor de Celso Furtado. Foi Ivo quem me apresentou a Bira, o primeiro comunista que eu soube ser comunista em Água Fria. Bira me falou das teorias de Darwin, enquanto eu lhe repetia a fé em Deus, embora eu próprio não possuísse tanta fé quanto gostaria. Antes de Bira, Ivo foi a primeira pessoa de esquerda que conheci na adolescência, a primeira a se declarar assim em fenomenais discussões. Escrevo agora e noto que o reino da cultura é a pátria da comunhão de toda a gente. Num clima de feroz repressão e de caça aos comunistas, Ivo discutia as luzes do socialismo com um menino magro, leitor de Seleções. Havia uma base de confiança entre nós, porque eu buscava uma razão para viver no mundo, não a encontrava, e o meu amigo Ivo afirmava ter o caminho para resolver toda a minha falta de um norte.
Existe ainda um outro comunista anônimo, de quem só vim saber da ideologia muitos anos adiante. A gente nem imaginava, mas ali perto do Mercado, na Rua Japaranduba, havia um comunista organizado, dirigente de célula, um homem que por si só, para quem não o conheceu, parece hoje mais um personagem de fábula. Um homem de história fantástica. Era seu Luiz, o barbeiro. Luiz Beltrão falava inglês, estudava filosofia, tanto na universidade quanto fora dela, em 1960. Depois se fez professor de escola pública. Um barbeiro professor de filosofia não seria mais próprio de uma história de Andersen? A gente nem se dava conta, mas o mundo da fantasia era parte da realidade dos nossos dias. E por isso o maravilhoso nos tomava como se fosse a coisa mais natural e elementar. Na barbearia de seu Luiz os moleques, os maloqueiros como eram tidos os jovens sem eira nem beira, sabemos hoje, os desocupados podiam entrar e ler à vontade os jornais e as reportagens da revista O Cruzeiro. Como se clientes fossem, todos os dias, todas as manhãs, abusando do ponto comercial, sem qualquer pagamento. Não sabíamos, aquilo era uma liberdade aberta por um comunista, barbeiro e filósofo.  
Sei, hoje, que os anônimos são tão importantes quanto qualquer celebridade, na história. “Depende, se estiverem organizados na luta” poderia me responder o filósofo na barbearia. Então eu conserto:
- Os comunistas fazem  a pátria onde os ninguéns se tornam alguém. 
Agora, sim, acho que o barbeiro Luiz Beltrão iria gostar desta lembrança.
*Urariano Mota é escritor e jornalista pernambucano. Colunista do Portal Vermelho

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