quinta-feira, 8 de outubro de 2015

22 anos da morte do Poeta baiano Antonio Short

*Por Douglas De Almeida


ANTONIO BARROCO SHORT

Nesta quarta-feira, 7 de outubro, completam-se 22 anos da morte do poeta Antonio Short, uma das figuras mais polêmicas da história recente da literatura baiana, que ficou conhecido por recitar poemas eróticos e de crítica social de forma irreverente e agressiva e ser um dos criadores do grupo Poetas na Praça, que durante a década de 80 desenvolveu um importantíssimo trabalho de divulgação da poesia, através de recitais em praças públicas, ônibus, praias, escolas, faculdades, portas de teatro e bares da cidade de Salvador.
A 14 de junho de 1947, em Monte Santo, pequena cidade do sertão nordeste da Bahia, povoada por histórias de Lampião, Corisco, outros cangaceiros e a saga de Canudos e Antonio Conselheiro, nasce Antonio Roberto Barreto Short. Quando criança, era estimulado pelo pai, o educador Aníbal da Costa Short, a decorar e declamar poemas de autores católicos, o que lhe deu, desde cedo, intimidade com as linguagens poética e religiosa.
Viveu no interior baiano (Monte Santo e Serrinha) até os 18 anos de idade, quando com a família veio morar em Salvador, mais precisamente na península itapagipana, para no final da década de 60 entrar para o mundo da literatura pelas mãos do educador Hermano Gouveia Neto, criador e mantenedor da Semana do Livro de Autor Baiano (Seliba), projeto que divulgava o escritor baiano nas escolas públicas da capital.
Em 1972, lança seu primeiro livro de poemas, Itinerário de Rua, publicado pela Imprensa Oficial da Bahia, com prefácio de Remy de Souza. Neste livro de estréia, mostra um poeta à procura de seu estilo, já apresentando uma poética com um certo rigor estilístico e carregada de fatalismo, característica que iria impregnar posteriormente sua obra. Nesta época, Antonio Short, filho de classe média, moço bem comportado, formado em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Bahia e funcionário público (Secretaria de Educação do Estado da Bahia), participava de diversos movimentos literários em Salvador, como a Feira da Poesia, na Praça da Piedade, evento organizado pelos poetas Cid Seixas e Carlos Cunha.
Anarquia, irreverência, transgressão –
Ainda em meados dos anos 70, iria desenvolver um trabalho cultural na Cidade Baixa juntamente com outros artistas – Ametista Nunes, Val do Carmo e Alberto Som – promovendo, em 1977, o 1º Salão de Poema Cartaz da Cidade Baixa. Nesta época, trabalhando na Fundação Cultural do Estado, se envolve com cinema e participa ativamente do movimento cineclubista baiano. Contudo, é no final dos anos 70 que iria acontecer uma reviravolta em sua vida, quando com os poetas Geraldo Maia, Eduardo Teles, Araripe Júnior (hoje, cineasta), Gilberto Costa e Ametista Nunes, cria o grupo Poetas na Praça, que iria durante o início dos anos 80 realizar um trabalho de resistência cultural através de recitais em praças públicas, escolas, ônibus, portas de teatro, e da publicação de poemas em folhetos que eram vendidos de mão em mão.

Nesta sua nova fase, Antonio Short torna-se uma figura irreverente e de espírito transgressor e iconoclasta, tornando-se conhecido - e temido - por recitar poemas eróticos e de crítica social de forma agressiva e escandalosa, em lançamentos de livros, conferências, vernissages e demais eventos culturais. Fazia isto como uma estratégia de provocar a ira de uma parcela da classe média intelectualizada e chamar para si a atenção de outros segmentos da população.
Por causa dessa sua postura, foi detido várias vezes pela polícia, ao recitar poemas eróticos em vias públicas. Certa feita, quando recitava poemas em um ônibus de Ribeira, foi levado por um sargento de polícia à delegacia da Cidade Baixa. Ao ser interrogado acerca do autor do poema, respondendo que era Gregório de Mattos, esbravejou o delegado: “É este que eu quero prender”. Ao lado de sua performance de poeta maldito, foi solidificando sua postura de intelectual comprometido com o estudo da literatura e de outras linguagens artísticas – cinema, música –, bem como a prática de animador cultural, publicando livros e organizando eventos lítero-culturais.
Cultor da filosofia de Artur Schopenhauer e conhecedor da poética de William Blake, Rainer Maria Rilke e Arthur Rimbaud, entre outros, Antonio Short, enquanto poeta recitador, performático, ia por uma linha mais popular – às vezes, populista –, recitando poemas “pornográficos”, até escatológicos, de diversos poetas, entre os quais Gregório de Mattos e Zé Limeira, só em alguns momentos, especiais, mostrando a sua poesia – uma poética inversamente existencialista, centrada na primeira pessoa, com versos curtos, assistemáticos, rimas internas e uma freqüência exacerbada de aliterações: faço da palavra/ terno instrumento/ do afeto florindo feto/ fecundando os canhões/ da ternura endurecida..
Em 1980 lança Existe Acato na Canção de Cada Noite, uma plaqueta com 20 poemas de unidade temática e estilística, agora sim mostrando um escritor seguro de seu ofício: Um poema, um poeta/ vício virando virtude/ na densidade dos dias/ mercador mágico de sonhos/ nas mesquitas do silêncio.
Antonio Short, espírito barroco perdido na modernidade do século XX, tinha como marca a contradição, o gosto pelos contrários. Exemplo disso são os autores que ele estudou profundamente, inclusive escrevendo artigos para jornais, o padre Antonio Vieira com os seus Sermões, que ele costumava recomendar para os mais jovens, e o poeta Gregório de Mattos, principalmente o satírico. Como poeta bipolar, na poesia contemporânea, elegeu como seus preferidos, dois Jorges: o brasileiro nordestino Jorge de Lima, de linha regionalista e religiosa, e Jorge Luís Borges, argentino de formação erudita e alcance internacional.
Poesia carregada de fatalismo, notando em Short uma repetição exaustiva de certas palavras, algumas do vocabulário religioso como esperança, desesperança, amor, desamor, deus, sangue, colheita, reza, salmo, etc.: Rezarei a reza do sexo/ nos salmos de esperança/ pregarei a minha incoerência/ na colheita da igualdade/ que se despedaça com medo/ da safra do dividir... Poderíamos dividir a poesia de AS em três vertentes. A primeira, uma lírica amorosa, com linguagem coloquial e um certo humor, com influências visíveis de Manuel Bandeira, em alguns momentos, ingênua, melodramática, quase piegas, encontra-se esta no seu primeiro livro: Deixe que eu cante em vão,/ a primeira canção nascida dos teus olhos,/ deixe que eu veja no céu/ a limpidez de sua alma.
A segunda linha, a mais presente em sua obra, é a crítico-existencialista, uma leitura da sociedade contemporânea urbana, percebendo-se estilisticamente, ecos do ritmo simbolista francês, notadamente Arthur Rimbaud, e ressonâncias da poesia da Beat Generation, mais precisamente, a de Allen Ginsberg, com bastantes citações e referências ao universo da contracultura: eu me ofereço em sacrifício/ à guitarra de Jimi Hendrix/ à voz de Bessie Smith/ ao sono de Marcuse/ à luta de John Lennon/ na boca do destino. Poética angustiada, confessional, deu seus primeiros e seguros passos no livro Existe acato na canção de cada noite e perpassou quase toda a sua produção dos anos 80: vou pelo passo da noite/ sorrindo meus desenganos/ pedindo licença ao tempo/ para contar a história da história/ na tortura da solidão.
A terceira vertente, como não poderia deixar de ser para um filho de Monte Santo, é regionalista, sertaneja, centrada basicamente no episódio de Antonio Conselheiro e a epopéia de Canudos, num tom épico, com ritmo e vocabulário em consonância com o tema, como mostra o poema “Reza”: jogos de jagunços/ a espera do coronel/ coitando a caatinga/ de rezas e tiros/ no coitado momento/ que as tropas chegaram.
Short, ainda em meados dos anos 80, edita com o poeta Zeca de Magalhães vários números do jornal Eco da poesia na praça e três panfletos com seus poemas: “Jogos de jagunços”, “Noturnos tiranos” e “No templo dos baculejos”. No início dos anos 90, já afastado da Praça da Piedade e com o Movimento Poetas na Praça desarticulado, passa a ter uma postura mais individualista e imediatista, editando uma série de cartões-postais com poemas de Omar Khayyam, Vladimir Maiakóvski, Bertolt Brecht e outros poetas.
Aos poucos, passa a viver mais em sua casa, na Ribeira, onde continuava a morar com sua mãe, Damarides Barreto Short - seu pai havia morrido em 1983 -, dois irmãos, além do seu namorado, o também poeta Paulo Costa. Nesta época, desenvolvia as funções de coordenador pedagógico do Colégio Estadual Luís Tarquínio, também localizado na Cidade Baixa, pois estava incompatibilizado, por sua postura anárquica, com seus colegas da Fundação Cultural do Estado. Meio recluso, distante dos seus ex-colegas poetas da praça, saía apenas algumas noites para ir ao bar “Quintal”, no Campo Grande, reduto de boemia, freqüentado por intelectuais e artistas, ligados politicamente à esquerda. Logo a doença iria dar os seus primeiros sinais, sendo internado algumas vezes e submetido a várias intervenções cirúrgicas. Na madrugada de 7 de outubro de 1993, após vários dias internado na UTI do Hospital Roberto Santos, morre vitimado pelo câncer, aos 47 anos de idade, silenciando precocemente sua voz literária, ao pronunciar, como suas últimas, essas palavras: “Minha mãe, sei que a fiz sofrer e ainda sofres, me perdoe, não és apenas minha mãe, és um presente dado por Deus”.
Cultivando o barroquismo de Antônio Vieira e Gregório de Mattos, viveu Short intensamente seus sentimentos e momentos opostos: foi funcionário exemplar e pesquisador dedicado, artista anarquista e provocador inveterado, assumiu sem trejeitos, mas abertamente, seu homossexualismo e viveu toda a sua vida ao lado da família. Porém, em todas estas instâncias, a poesia foi sua eterna companheira, valendo para a sua rápida permanência entre nós, os seus versos, publicados num cartão-postal: sou viciado em poesia/ e trafico liberdade.

* Douglas de Almeida é poeta, arte-educador e diretor da Biblioteca Prometeu Itinerante.

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